Mourinho: O Matateu era um fenómeno dentro da área, melhor até que o Eusébio


José Manuel Mourinho Félix
Ferragudo - Lagoa, 12/02/1938
Setúbal, 25/06/2017

Defendeu a baliza Belenense de 1968/69 a 1973/74

Treinador-adjunto de Homero Serpa, após demissão de Joaquim Meirim, na época de 1970/71 

Treinador principal na época de 1982/83

Vice-Campeão Nacional de Futebol da época 1972/73

39º jogador Internacional “A” do Clube de Futebol 
“Os Belenenses” 
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"Comparei as luvas do Petr Cech com as minhas e é para rir"

- Entrevistámos o Eusébio há um mês para a edição de Natal e ele falou-nos de um penálti falhado por ele, na estreia, com o V. Setúbal. O guarda-redes era o Félix. Lembra-se disso?
- Sim. Há coisas que não nos esquecemos.
- Mas Eusébio ainda não era Eusébio. Era só um menino de 19 anos.
- É verdade, mas já se via aquilo que ia ser. Tenho até uma história curiosa. Uma vez [entre a chegada de Eusébio a Portugal em Dezembro de 1960 e a sua estreia oficial em Junho de 1961], encontrei o José Augusto por acaso e perguntei-lhe: ''Então, que tal é o homem? É tudo aquilo que a imprensa escreve?'' A resposta dele foi só esta: ''Alguém tem de sair para ele entrar'' [acabaria por ser Santana]
- E do penálti em si, do que se lembra?
- Foi uma defesa por instinto. O Eusébio atirou para a minha esquerda e defendi. Foi ali nos Arcos [e Félix aponta para a sua frente, em direcção ao Bonfim].
- E mais?
- Tenho mais histórias, sim. Olhe, só joguei por dois clubes: V. Setúbal e Belenenses. Na inauguração dos estádios deles, defendi um penálti. Na inauguração do Bonfim, defendi um penálti da Académica. No primeiro jogo oficial no Restelo, pelo V. Setúbal, defendi um penálti do Matateu.
- "Só"?
- Também defendi um penálti do Yazalde, no Restelo, num Belenenses-Sporting.
- Eusébio, Matateu e Yazalde: os três avançados mais completos da sua era.
- Sem dúvida. O Matateu era um fenómeno dentro da área, melhor até que o Eusébio. Quero dizer, dentro da área, a rodopiar sobre os adversários. Fora dela, o Eusébio foi o rei. O Yazalde era um espectáculo para qualquer um. De um fair-play sensacional.
- E esses três penáltis foram defendidos com luvas ou sem?
- Naquela altura, sem luvas.
- Como???
- Era moda, sem luvas e cuspo nas mãos. Só comecei a usar luvas a meio da carreira, quando torci o pulso. Vesti as luvas para remediar.
- E como eram elas?
- De borracha. E é curioso, porque o meu filho guardou as minhas últimas luvas e há dias estávamos a compará-las com as luvas do Petr Cech. É para rir. Eu digo sempre isto ao meu filho: só gostava que um guarda-redes de agora fizesse um treino sem luvas. Ui, que dor!
- Mas então nunca lhe aconteceu um acidente à Cech na cabeça?
- Uma vez. Num Belenenses-Varzim. Perdi a memória. Não me lembro de nada mas lá continuei na baliza. Depois, fui para casa. Se fosse agora, ia para o hospital, seria observado...
- Quando é que foi para guarda-redes?
- Quando é que eu fui para guarda-redes? (olha para o ar, pensativo, repete a pergunta) Nasci no Algarve (Ferragudo) e comecei a jogar à bola. Com os moços da minha idade, era avançado. Com os homens, ia para a baliza. Como andava calçado, graças a Deus, eles mandavam-me para a baliza. Mas o curioso é que a primeira proposta que tive foi do Olhanense, para jogar à ponta-esquerda. Eles tinham-me visto naqueles jogos entre terrinhas (risos).
- E recusou?
- Sim.
- Então porquê?
- Disse ao senhor que não era ponta esquerda, era guarda-redes.
- E como chegou a júnior do V. Setúbal?
- Uns dois anos depois, um senhor viu-me jogar à baliza e convidou-me.
- Quem era o guarda-redes do Vitória?
- O Baptista. Já tinha 36/37 anos. No ano seguinte, eu substitui-o.
- Em que jogo?
- Atlético-V. Setúbal, 2-1.
- Quem foi o treinador que o lançou?
- Biri, Janos Biri, um húngaro campeão nacional pelo Benfica. Na verdade, ele lançou-me nos juniores. Nos seniores, foi um italiano chamado Rino Martini, antigo guarda-redes do Milan e até da selecção italiana. Ele gostava muito de mim e deu-me a camisola dele. Era preta e e eu joguei com ela! O equipamento não era totalmente preto, porque as meias eram verdes, cor do Vitória.
- E como é que o Félix se definia?
- Era ágil. Bom entre os postes, menos bom fora. Como era franzino, tinha mais dificuldades nos cruzamentos.
- Uma espécie de Bento, portanto?
- Se fosse mais alto, o Bento seria o melhor guarda-redes de sempre. Ou perto disso. Era ágil, saía-se bem, jogava bem com os pés. Até marcou penáltis.
- E o Félix, com os pés?
- Olhe, o meu neto quer ser guarda-redes. Às vezes, jogo com ele e dou-me bem com os pés (risos). Safo-me, claro. Então, tinha sido ponta-esquerda no Algarve...
- Qual foi a sua melhor defesa?
- Cabeceamento de Espírito Santo num V. Setúbal-Benfica. A bola ia entrar no ângulo superior. Saltei e agarrei-a. Tenho a foto desse lance lá em casa. Por trás da baliza.
- Fantástico. E o seu maior frango?
- Num Belenenses-V. Setúbal, eu como guarda-redes do Vitória. Estava a jogar tão bem que nem acreditei no meu erro. Na pressa de reatar o jogo, quis agarrar na bola e organizar um ataque. A bola fugiu-se-me por entre as mãos. Fiquei irritado.
- Com ou sem luvas?
- Sem luvas, ainda.
- Ah, outros tempos.
- Sim, claro. O futebol evoluiu muito. No meu tempo, íamos à Luz ou a Alvalade para perder por poucos. 1-0, 2-0... Já ganhei em Alvalade, como jogador do V. Setúbal. Mas nunca ganhei na Luz. Nem nas Antas. Bem, nas Antas, só ganhei como treinador.
- Por quem?
- Rio Ave, em 1981-82.
- Rio Ave? Um feito.
- Sim, ganhámos 2-1. O treinador do FC Porto era Hermann Stessl, um austríaco.
- Já que está a falar disso, aproveito para lhe perguntar sobre um Sporting-RIo Ave, em que um jogador seu lesionou-se no aquecimento e o Félix queria substitui-lo pelo seu filho José, algo que não foi aprovado pelo presidente do clube.
- Não foi bem assim. Um jogador lesionou-se mas o meu filho não ia jogar. Ia para o banco de suplentes.
- E o presidente?
- Tentou meter-se na conversa mas ficou por ali. No final da época, pedi para sair.
- Quem era o presidente do Rio Ave?
- José Maria Pinto.
- Como treinador do Rio Ave, também chegou à final da Taça de Portugal.
- Perdemos 4-1 mas foi uma festa. Romaria de Vila do Conde até ao Jamor... e recebi os parabéns do Pedroto.
- O treinador do FC Porto?
- Sim. Eu conhecia-o há muito. Quando ele estava no fim da carreira, defrontei-o algumas vezes.
- Quando o Félix começava no V. Setúbal?
- Sim. O Pedroto era um médio com técnica e bom remate.
- Em Setúbal, o Félix só jogava futebol?
- Não, isso não dava. Também trabalhava: funcionário da câmara de Setúbal.
- E quando foi para o Belenenses?
- Aí, como o salário era melhor, deixei o meu emprego na câmara.
- Mas continuou a viver em Setúbal?
- Sim. Aliás, essa foi uma das minhas condições quando assinei pelo Belenenses.
- E o que se lembra dos tempos no Restelo?
- Da rivalidade com o Atlético. Aquilo era pesado (risos). Uma vez, veja lá bem, o guarda-redes deles lesionou-se, o segundo guarda-redes também se lesionou, teve de ir o Candeias para a baliza e só ganhámos 1-0 de penálti. E também me lembro de ter sido convocado pela selecção AA. Fomos à Minicopa, 37 dias juntos no Brasil. Perdemos a final com o Brasil. Eu entrei nos últimos 15/10 minutos com a Rep. Irlanda, lançado pelo José Augusto, o seleccionador. Ainda tenho a camisola desse jogo.
- E mais memórias do Belenenses?
- Outro penálti. Desta vez, eu não defendi. Foi cá uma berlaitada do Gento (risos).
- Do Gento. O Gento, do Real Madrid?
- Pois. Foi na minha primeira época no Belenenses (*). Acabámos o campeonato em segundo lugar e fomos convidados para ir a Madrid, por ocasião dos 25 anos do Chamartín (Santiago Bernabéu, casa do Real Madrid). Era o jogo de despedida do Gento e ele lá teve de marcar o golo da ordem. Aquilo não foi penálti (gargalhadas).
- Grande honra...
- É verdade, mas há história nesse jogo.
- Então?
- Éramos para ir de avião, mas houve qualquer coisa que nos impediu de ir. Tivemos de ir de comboio, A noite toda, em vagões-cama. Chegámos a Madrid às cinco ou seis da manhã e quem estava lá à nossa espera? O Gento. Com uma impecável gabardina bege. Cumprimentou-nos um a um e levou-nos ao hotel. Um cavalheiro. Nesse amigável, o Real Madrid ganhou 2-1 ao Belenenses e o Eusébio jogou pelo Real Madrid.
Entrevista por Rui Tovar, Publicado no jornal 'i' em 26 de Janeiro de 2011

(*) Nota do editor do BI: esse jogo foi em 14 de Dezembro de 1972, 4ª época de Mourinho no Belenenses e não na 1ª época como é referido, certamente por lapso ou falha de memória.

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